Depois de muito tempo sem postar nada, aqui estou eu novamente! Como disse em um post mais antigo (https://brenooficial.wordpress.com/2012/01/30/grey-griffins-a-vinganca-do-rei-das-sombras-prologo-traduzido/), onde postei o prólogo de um novo livro que estou traduzindo, venho aqui colocar o primeiro capítulo da história.
Comentem com suas opiniões sobre essa história, pois se o recebimento da tradução for positivo, continuarei postando o resto 🙂
Até logo!
1. Tudo está nas cartas
Avalon, em Minnesota, era um vilarejo bastante tedioso. Ou melhor dizendo, era ao mesmo tempo tedioso e perfeito. Os jardins das casas eram cuidados com precisão, e os parques eram repletos de flores que poderiam ganhar o prêmio de perfeição numa feira de amostras. Também era muito pequeno. Tinha apenas um farol, um banco, um supermercado e um cinema com só um telão que não abria aos domingos. Os pais deixavam os filhos brincarem nas ruas depois do anoitecer, e ninguém trancava as portas de suas casas. De fato, Avalon era um povoado em que cada dia perfeito era exatamente igual ao anterior e que voltaria a ser no dia seguinte. Se tudo isso parecia maravilhoso para alguém que viesse de uma cidade barulhenta e cheia de ruído de trânsito, com arranha-céus gigantescos, engarrafamentos e sirenes de polícia, para Grayson Maximillian Sumner III, ou Max, como preferia ser chamado, a tranquilidade de Avalon era um verdadeiro pesadelo.
Assim como a cidadezinha, pouca coisa chamava atenção em Max, pelo menos à primeira vista. Estava com a pele bronzeada depois do verão que passara de um lado para o outro, revezando entre ir à praia e jogar beisebol, e seu grande cabelo castanho e sedoso, nem curto nem longo, tinha ficado mais claro por causa do sol e parecia cor de milho. Nenhum desses traços fazia-o parecer diferente.
Mas se tinha algo especial em Max eram os olhos, que eram grandes e mudavam de cor dependendo do clima, ainda que na maioria das vezes fossem cinza escuro. Somente para deixá-lo envergonhado, as senhoras mais velhas costumavam ressaltar o quanto eram bonitos e quase sempre nos piores momentos (como, por exemplo, no shopping em frente aos seus amigos, que riam sem dó). Mas Max não se destacaria em um pátio de colégio cheio de outras crianças.
Tinha onze anos de idade, não era alto nem baixo, nem gordo nem magro. Não era o mais rápido da escola, nem o que chutava a bola mais forte, e perdia o fôlego tanto quanto quem o fazia. Mas quando o time era escolhido, ele nunca ficava por último. Certamente Max não se destacava por nada, exceto por seu dinheiro.
A família Sumner era rica. Mas não o tipo de ricaços que vivem em casas de luxo (mas ainda assim o faziam), ou que têm carros italianos (seu pai tinha pelo menos três). Os Sumners eram do tipo que possuíam povoados inteiros, centros comerciais, prédios e infinitos hectares de terras para cultivo no mundo inteiro. Os investimentos em imóveis faziam dos Sumners multimilionários (segundo os boatos, o “multi” possuía muitos cifrões). Quase todo o povoado de Avalon era só mais uma das posses dos Sumner.
Apesar de tudo, Max nunca havia se importado muito come esse assunto. A única coisa que o preocupava naquele momento era que estava atrasado. Olhou para o relógio e franziu o cenho. Muito atrasado. Max deslizava com sua bicicleta pelas ruas de Avalon a caminho da loja de antiguidades, o único lugar do povoado que parecia legal para ele e o único que, fisicamente, não havia mudado desde o divórcio de seus pais.
A mansão dos Sumner parecia vazia sem o seu pai, apesar de a mãe e da irmã de Max ainda morarem nela. Mas Annika Sumner mal dava atenção aos seus filhos. Como era uma estrela em Avalon, tinha compromissos demais para perder tempo cuidando de seus filhos, ainda mais agora que estava solteira de novo. Aliás, havia contratado Rosa para isso.
Max nunca havia se sentido tão sozinho na vida. E com as férias de verão prestes a terminar, sentia-se cada vez mais e mais deprimido com a volta ás aulas, ou pior, e, ter que contar a todos no colégio o trágico divórcio de seus pais. As coisas eram assim em um povoado pequeno como Avalon, em Minnesota. Não existia privacidade, acima de tudo se o seu sobrenome fosse Sumner.
As manchetes de jornal contavam a enorme quantidade de dinheiro que a mãe de Max havia recebido no acordo econômico; mas o dinheiro não te conta uma história na hora de dormir, nem te leva para fazer um piquenique com a família, muito menos te dá conselho quando você perde a Liga Júnior nem te ajuda com as lições de matemática. Não, Max começava a irritar-se com o dinheiro de sua família. Seus pais corriam atrás como cães atrás de suas presas, mas ele daria até o último centavo para que pudesse vê-los juntos novamente, mesmo que na realidade não tivesse esperanças de que isso acontecesse.
Frustrado, pedalou com mais força.
Enquanto o asfalto desaparecia em baixo das rodas da bicicleta por causa da velocidade, ele lembrou-se de um sonho assustador que insistia em sair do fundo de sua mente, mas que parecia sumir quando ele tentava lembrar-se dos detalhes.
Quando chegou ao seu destino, Max desceu da bicicleta com um salto, encostou-a na parede e passou por debaixo de uma placa desbotada que dizia “LOJA DE ANTIGUIDADES”. Era uma loja que vendia livros intrigantes, antiguidades misteriosas, as típicas lembrancinhas de viagem e uma grande quantidade de artigos para colecionadores. Alguns eram autênticos. Outros, não.
Ao passar pela porta que retiniu ao abrir-se e adentrar o recinto escuro, Max sentiu na mesma hora o cheiro de livros velhos e do doce tabaco de cachimbo. Algumas lâmpadas de cristais sujos provocaram uma luz fraca, e os olhos de Max tiveram que acostumar-se com o lugar que já conhecia muito bem. Havia alguns tesouros curiosos espalhados por todas as partes, livros antigos e amarelados empilhados em todos os lugares possíveis e mapas com as bordas enrugadas pregados com tachinhas nas paredes.
Max foi avançando por entre a bagunça, ignorando a placa de “CUIDADO COM OS DRAGÕES” que estava pendurada um tanto quanto torta na parede do fundo e desapareceu por trás de uma porta pequena. Em seguida subiu correndo um lance de escadas e segurou um batente que estava pendurado em uma pesada porta de carvalho. Ao bater, o barulho ecoou por todos os lados e imagens de castelos e cavaleiros invadiram a cabeça de Max.
— Senha? — perguntou uma voz nervosa do outro lado da porta.
— Excalibur — respondeu Max. Ouviu-se o retinir de alguns cadeados abrindo-se, e por fim a porta abriu-se.
— Oi, Ernie — disse Max, ao entrar. — Cheguei tarde?
— Só chegamos eu e a Natália até agora — explicou Ernie Tweeny, com seus óculos de armação escuras que ficavam ridiculamente grandes nele e um pouco tortas. Mastigava fazendo barulho uma barrinha de chocolate, que ficava parecendo uma pasta marrom em seu aparelho dentário, outrora brilhante. Era espantoso que não fosse tão gordo como era alto, considerando seu consumo exagerado de doces. Ernie era magro, não tinha coordenação e seus cabelos negros tinham que estar sempre sendo penteados. Suas roupas podiam ser definidas como ecléticas e consistiam em meias longas, calça xadrez curta e um suéter listrado maior que ele. Ernie assumia ser um covarde que se assustava com qualquer coisa, fossem aranhas ou sua própria sombra, mas apesar de tudo não tinha vergonha de quem era. Pelo lado bom, podia-se dizer que era bem-humorado e também um amigo leal. Mas se os seus medos criavam-lhe motivos de piada, o mesmo não podia ser dito da asma. Mas ainda assim Ernie era o melhor amigo de Max.
Atrás de Ernie encontrava-se Natália Felícia Anastácia Romanov. Estava sentada em uma enorme mesa redonda que enchia quase todo o quarto pequeno, cuja grande janela panorâmica abria-se a quase toda a Rua Principal.
— Olá, Grayson — cumprimentou ela, chamando-lhe pelo sobrenome. Natália adorava formalidades, e se a ocasião não era propícia, ela fazia. Também gostava de jogar detetive, sobretudo resolver algum mistério, e passava muito tempo aprendendo modos de reconhecer vários timbres de voz e os vários tipos de impressões digitais. Sabia que era Max que subia a escada antes mesmo que ele chamasse, e por isso não se incomodara em levantar o olhar do baralho de cartas que se estendia diante dela quando ele entrou.
Natália era tão branca como a neve e tinha o rosto coberto de sardas, e o cabelo liso, longo e ruivo estava preso em duas tranças desafiadoras. Quando os adultos falavam dela, chamavam-na de atrevida, mas precoce talvez fosse se encaixasse melhor. Natália não sabia o que era o medo, era muito inteligente e tinha um vocabulário extremamente amplo para uma garota de onze anos. Era conhecida por gostar de ler vorazmente, seu amor obsessivo por unicórnios e por ter a melhor mente investigadora da escola (mas na verdade era muito competente).
Ainda sobravam duas cadeiras vazias e diferentes depois que Max e Ernie sentaram-se perto de Natália. Uma delas era muito maior que a outra, o que podia parecer estranho, mas a própria sala era bastante exotérica. Havia símbolos estranhos desenhados sobre a pintura descascada na parede de azulejos que, por sua vez, tinha vários quadros pendurados, com paisagens, criaturas misteriosas e coisas do tipo. Nos cantos, os candelabros de ferro reluziam, e a fumaça das velas que subia em espiral pelo teto escuro de metal assemelhava-se a várias serpentes tontas. Para alguns podia parecer um lugar confortável, mas para Max era como sua casa (pelo menos parecia mais que dele ultimamente).
— Pronto para jogar? — perguntou Ernie um pouco nervoso enquanto repassava seu baralho de cartas, muito parecido com o de Natália, embora em condições muito piores e todo desorganizado.
— Acho que sim — respondeu Max observando ao seu redor. Ainda estava tentando recuperar o fôlego, feliz por não ser o último a chegar. Não gostava de se atrasar para nada. Essa fora uma das primeiras lições que seu pai havia ensinado. Nunca chegue cedo demais a uma reunião e nunca, em circunstância alguma, chegue tarde. Mas nunca tivera uma reunião de negócios, é claro, e mesmo sabendo como elas eram, não tinha pressa nenhuma em crescer. Quem dera seu pai pensasse do mesmo modo.
De qualquer maneira, nenhum dos três amigos se preocupava com negócios naquele exato momento. Seus pensamentos estavam mais focados nas cartas que tinham nas mãos. Pertenciam a um jogo chamado Távola Redonda – um jogo antigo que, segundo boatos, fora criado pelo próprio Rei Arthur e que só era passado às crianças mais corajosas e audaciosas do mundo (ou pelo menos era o que dizia na embalagem). Tinha mais cartas, era maior que um baralho normal e continham vários tipos de armadilhas de feitiços fascinantes, assim como cavaleiros e monstros. O objetivo era derrotar o exército do inimigo montando uma estratégia, usando a força das armas e a sorte concedida por um par de dados de dez lados chamados de “nós”. Cada um dos três amigos tinha seu próprio baralho, que haviam montado havia muito tempo com muito esforço para conseguir colecionar, completar e cuidar de tudo. Mas para eles o melhor da Távola Redonda era o fato de que, pelo que sabiam, ninguém mais no mundo (ou pelo menos em Avalon, Minnesota) que o jogasse. Era o segredo deles e queriam que assim continuasse.
Enquanto Max tirava sua mochila e pegava o baralho, Olaf Iverson, mais conhecido como Iver, irrompeu no recinto com suas enormes botas pretas. O dono da loja de antiguidades, Iver, era alto, tinha os ombros largos e uma barriga não muito diferente da do Papai Noel. Um bigode prateado e bem aparado e uma barba impecável lhe davam um ar exótico. Era, também, muito inteligente e falava, segundo seus cálculos, mais de vinte e sete línguas. Muito havia sido falado no povoado sobre sua procedência e sobre o que fazia antes de abrir a loja, mas as crianças o adoravam como a um avô adotivo, e ele parecia ser o único adulto que os compreendia. Além disso, sua loja era a única do mundo que vendia a Távola Redonda.
— Bom dia, Iver! — disse Ernie, animado.
— Será mesmo um bom dia? Bom, senhor Tweeny, vou acreditar na sua palavra — respondeu Iver com sua voz penetrante. — Mas tome cuidado. Eu não te pedi um bom dia, e o senhor está me dando um de qualquer forma, quer eu queira ou não.
Enquanto Ernie tentava decifrar a resposta de Iver, Natália caiu na risada. Era a típica garota que conseguia entender coisas que os outros não conseguiam.
— E você, Natália? O que é que traz hoje? — perguntou-lhe Iver.
— Meu novo disfarce! Gostou? — Natália levantou-se da cadeira, mostrando a fantasia de elfo que sua mãe havia feito com mocassins verdes, um vestido e uma capa esmeralda. Ninguém sabia muito bem por que se disfarçava para jogar, mas segundo ela “ajudava a incorporar a personagem”, ainda isso não esclarecesse muita coisa.
— Parece mais uma rã — brincou Ernie com uma valentia não muito comum. Normalmente, Natália lhe daria um beliscão pelo insulto, mas naquela hora ou não o ouvira ou não lhe dera atenção e deu uma volta claramente orgulhosa.
— Muito bonita — disse Iver e em seguida bateu palmas brevemente, — Mas temo que temos uma busca para fazer hoje, e na verdade já é hora de começar. Os Grey Griffins estão preparados?
— Mas ainda falta um membro da equipe — disse Ernie, o menor dos Grey Griffins. — Achei que as regras fossem nunca deixar ninguém para trás.
Naquele momento, Harley Davidson Eisenstein entrou pela porta, ofegando e coberto de barro. Ele era grande a parecia ter pelo menos treze anos, embora na verdade tivesse onze e uma reputação merecida de durão. Seus olhos eram de um azul forte, tinham um olhar intenso e escondiam-se por trás de uma franja castanha e desalinhada. As manchas de graxa que tingiam seu queixo entregavam que estivera trabalhando de novo em seu kart. Harley costumava usar camisetas com fotos de carros grandes ou bandas de rock, e seus jeans surrados meio rasgados que usava cobriam os sapatos de borracha desbotados. Parecia repelente para as meninas, pois sempre estava com as unhas sujas e os dedos cheios de calos. Mas Harley não se importava muito com o que pensavam dele.
— Ah, jovem senhor Eisenstein… Parece que finalmente chegou. Por gentileza, pegue uma cadeira. Mas seja rápido, se não se importar — disse Iver, severamente.
— Desculpe, Iver — murmurou Harley enquanto sentava-se na única cadeira livre. Apesar do atraso, Iver começou a explicar as regras do jogo, a dizer o tempo limite e a checar cada dado para assegurar-se de que tudo estava em ordem. Harley pegou seu baralho e virou-se para Max. — Não vai acreditar no que acabou de acontecer…
— Onde achou essa carta? Que estranha! — exclamou Ernie, cortando Harley no meio da frase.
— Ah, sim — disse Iver, estendendo a mão para pegar a carta do meio do baralho de Harley. O velho estudou a imagem atenciosamente, franzindo o cenho até que as rugas de seus olhos se convertessem em sulcos profundos. — Oberon…
O recinto pareceu esfriar, e os jovens ficaram calados.
— É… — continuou Iver. — É uma carta rara, mas não me lembro de tê-la dado. Lembra-se de onde veio?
Harley deu de ombros.
— Bom, de qualquer modo, sugiro que a guarde e que se esqueça dela.
— Por quê? — perguntou Ernie.
— Por um bom motivo, senhor Tweeny. Por acaso não sabe quem é Oberon?
Ernie o olhou com uma expressão distante, e a boca aberta enquanto um pouco de baba misturada com chocolate descia pelo seu queixo. Enigmas não eram o seu ponto forte.
— Oberon é o rei das sombras. Um nome obscuro que nem sequer chega perto de descrever sua maldade. É um rei sábio e terrível, perigoso e sem piedade, cruel e infinitamente poderoso das Terras Sombrias das Faedas. Senhor Eisenstein, possui uma carta que te dará grande vantagem no jogo, mas a que preço? Essa carta quase te garante a vitória, mas precisa saber que ela é capaz de trair seu dono nos piores momentos.
— Isso não passa de bobeira. — Natália mexeu a mão como se estivesse espantando uma mosca. — Não passa de um jogo. Uma carta não consegue trair ninguém.
— Minha jovem — disse Iver franzindo o cenho. — Deve saber que nem tudo é tão simples como seus desenhos animados de sábado de manhã. Ignorar essa carta, ou qualquer outra, pode significar sua ruína ou a de seus amigos. Portanto, não vou permitir que os coloque em perigo simplesmente porque não é capaz de entender essa lição.
Natália encolheu-se um pouco sob seu olhar severo, mas Max e Ernie levantaram-se de suas cadeiras e aproximaram-se de Harley para ver mais de perto a carta de Oberon. Por trás de sua capa escura, os olhos do Rei das Sombras brilhavam cheios de crueldade sob um capuz e tinha os dedos esticados como fossem garras sedentas na direção dos quatro amigos. Era uma imagem perturbadora, e Max desejou que não a tivesse visto.
— É assustadora — disse Ernie mastigando ruidosamente a segunda barrinha de chocolate, mas essa com amendoim.
— É mesmo — disse Iver sombriamente. — Mas até descobrirmos como essa carta veio parar no seu baralho, por que não deixá-la guardada, Harley? Enquanto isso, os outros voltam aos seus assentos. Temos que jogar uma partida, então não vamos permitir que alguma nuvem obscura se interponha em seus caminhos. Mas antes de começar, devo preparar o local.
Iver era muito bom em contar histórias, e seu comportamento como o Mestre do Jogo chegava a ser tão bom que tudo parecia ser real.
— Hoje o jogo será diferente, pois não jogarão sozinhos. Vão lutar juntos. Uma força maligna antiga despertou, e a escuridão está se espalhando pela terra. — Ele fez uma pausa e os olhou nos olhos. — Vocês quatro são os únicos que estão entre esse exército da escuridão e a destruição total do mundo que amam. Seu exército, sua magia e sua inteligência são as únicas armas das quais dispõem. Nada mais pode salvá-los E digo uma coisa: se lutarem, terão poucas chances de sobreviverem. Mas se não lutarem com firmeza, a vida como a conhecem mudará para sempre.
Os garotos ficavam encantados com as palavras de Iver. Nunca tinham jogado em grupo antes, mas ainda assim seria muito emocionante.
— Têm exatamente dez segundos antes que ataquem — informou Iver, sacando seu próprio baralho de cartas da Távola Redonda despejando-o sobre a mesa. As cartas estavam viradas para baixo, mas todos imaginavam o que tinha do outro lado. Duendes. Duendes horríveis, asquerosos e famintos. Um exército inteiro.
— O que vamos fazer? — indagou Ernie, assustado.
— Lutar — respondeu Max, pegando seus dados.
— Excelente — disse Iver, sorrindo. — Que o jogo comece, então.
O jogo da Távola Redonda se desenrolava sobre um tabuleiro muito bem elaborado, que parecia um mapa antigo e amarelado, em que quatro jogadores podiam participas, mas que se estendia para acomodar até seis quando se juntavam dois tabuleiros. Foi assim naquele dia, pois Iver estava formando um exército de cartas no canto mais longe da mesa, bem em frente a Natália. Os outros três garotos estavam dos dois lados, com as palmas das mãos suando enquanto esperavam Iver fazer a primeira jogada.
Aparentemente em desvantagem, Iver começou o jogo. A questão era se reforçaria suas defesas ou se iria direto ao ataque. Os Grey Griffins não tiveram que esperar muito. Rapidamente, Iver virou várias cartas que estavam enfileiradas diante dele, e um imponente exército apareceu: uma horda de duendes, gárgulas de pedra, um lobisomem rugindo e monstro horrível chamado de Duende Destruidor…
Max quase caiu de sua cadeira. O Duende Exterminador! Era exatamente igual ao monstro de seu pesadelo. Mas… Como era possível?
O próprio Iver parecia surpreso com as cartas que havia sacado, e franziu o cenho em silêncio por alguns instantes que se estenderam eternamente, mergulhando em pensamentos. Será que estava preocupado? Max não sabia, mas o que quer que fosse passou logo, e o ataque de Iver foi rápido e eficiente.
— Eu os desafio, senhor Tweeny — disse Iver, enquanto jogava seus dados, um belo par que parecia ser feito de prata pura. Ernie respondeu atirando seus próprios dados, mas o resultado de Iver foi mais alto, e antes que Ernie pudesse sequer expressar sua frustração, o ancião tirou a carta dele do campo de batalha. Em seguida, virou-se para Max.
— O Duende Exterminador ataca — desafiou Iver. Max engoliu em seco enquanto Iver balançava a mão antes de lançar seus dados de metal. Oitenta e cinco. Uma boa jogada. Além do que, cada carta (cada monstro, no caso) tinha um valor que os tornava mais fortes ou mais fracos que a carta do oponente. O valor de ataque do Exterminador era ainda maior. Uma fada do bosque teria o valor de ataque pequeno; e um trasgo, muito alto. Quando Max viu a jogada de Iver e somou com o alto valor de ataque, mordeu o lábio preocupado.
O Exterminador não seria fácil de derrotar.
Max fechou os olhos e lembrou-se do som horrível das garras do Exterminador ao arranhar o chão de madeira em seu quarto. Lentamente, lançou seus dados. O primeiro caiu. Nove. Isso queria dizer que sua jogada estaria entre os noventa. Ainda tinha chance. Mas seu coração deu um pulo quando o segundo dado caiu rodando da mesa e se arrastou pelo chão até parar perto dos pés de Harley.
— E aí? — perguntou Ernie, que não aguentava a tensão. Max precisava de uma jogada de 94 para que, somada ao alto valor de defesa do seu cavaleiro, pudesse ganhar. O que significava…
— É um três — gritou Ernie enquanto Natália e Ernie soltavam exclamações. Um empate. Mesmo que não tivesse ganhado, Max tinha conseguido sobreviver defendendo o ataque do Exterminador. Não obstante, a batalha estava longe de acabar.
O jogo continuou da esquerda para direita, de trás pra frente, com perdas de todos os lados. Mas ainda que os Griffins estivessem em maior número que o exército de Iver, considerando que eram quatro conta um, eu que deveriam ter derrotado-o sem problema algum, o velho tinha cartas poderosas demais. Quando o dia deu lugar à noite, ainda não havia um vencedor, então Iver decidiu suspender a partida até o sábado seguinte.
— Vocês lutaram com muita valentia — disse-lhes com um sorriso de aprovação.
— Mas você quase passou o rodo — suspirou Ernie, olhando para seu baralho bem menor agora. — Vou jogar com o que na semana que vem? Perdi quase todas as minhas cartas.
— Eu também — disse Harley, balançando a cabeça decepcionado.
— Exatamente — apontou Iver. — Mas o objetivo de hoje não era ganhar, e sim sobreviver.
Então, diante do olhar espantado dos Griffins, ele foi devolvendo a cada um deles um baralho com as cartas ordenadas. Normalmente, quando se perdia uma carta em batalha era para sempre (ou até que você a ganhasse de volta). Dizer que Iver estava sendo generoso era pouco.
— O que importa para mim é que tenham aprendido algo hoje.
— Aprendido? — perguntou Natália, apertando as sobrancelhas, ainda aceitando suas antigas cartas ansiosamente. — O que quer dizer?
— Quero dizer exatamente o que disse, é claro. Podem pensar e conversar sobre isso mais tarde, se quiserem. Mas agora devo insistir para que se voltem logo para suas casas para o jantar que com certeza deve estar esperando-os.
Os quatro jovens eram amigos íntimos. Era assim desde o jardim de infância, quando se uniram para defender Ernie do assédio escolar. Agora, alguns anos depois, eram amigos inseparáveis e tinham seu próprio clube secreto, que se chamada A Ordem dos Grey Griffins. Fora ideia de Max, e o pai dele havia apoiado e até mesmo construído uma casa enorme no bosque para suas reuniões. Tinham senhas (as quais Ernie nunca lembrava), apertos de mão secretos (que mudavam todo dia) e até músicas secretas (que ninguém cantava, exceto Natália).
— Onde você se meteu? — perguntou Ernie a Harley enquanto saíam ao ar fresco.
— Minha mãe e eu tivemos que levar Rosco ao veterinário — disse Harley, preocupado. Rosco era um cachorro de caça enorme que Harley tinha ganhado em seu aniversário de seis anos. O cão era tão grande como um tanque, feroz como um leão e havia desenvolvido um gosto excessivo por carteiros e rodas de caminhões, mas ainda assim Harley o adorava.
— O que aconteceu? — perguntou Natália ao perceber que Harley tinha vários cortes no rosto. — Tem sangue debaixo das suas unhas. Aconteceu alguma coisa?
— Rosco brigou com alguma coisa que havia atrás de casa — explicou Harley. — Eu estava do lado de fora mexendo no meu kart, e o Rosco correndo atrás de esquilos quando de repente o cachorro idiota começou a grunhir e latir e saiu correndo na direção das árvores.
— E o que era? — perguntou Max.
— Não tenho certeza. Quando cheguei, o Rosco estava lutando com a coisa nos arbustos. Mas seja lá o que fosse, era forte. E do mal. Jogou ele no chão.
— O Rosco? — perguntou Ernie, que pensava que nada menor que um elefante pudesse enfrentar o cão gigantesco de Harley.
— É — respondeu Harley. — Não sei o que poderia ter acontecido se eu não tivesse chegado.
— Como era essa coisa? — perguntou Natália enquanto continuavam andando pela rua. Não sem antes ter pegado seu Caderno de Pistas, um caderninho de arame rosa que ela havia decorado com adesivos de unicórnios. Sempre fazia anotações quando estava tentando resolver um mistério.
— Foi tudo tão rápido que não consegui ver direito. Mas sei que era escuro. Foi a única coisa que vi — Harley franziu o cenho. — Mas…
— O quê? — Natália o espetou com a caneta.
— Eu não vi os olhos — explicou Harley.
— Como assim?
— Bom, vocês sabem que um guaxinim ou um cervo refletem a luz nos olhos e dá pra ver a mais de um quilômetro. Mas aquela coisa que vi não refletiu nada quando a iluminei com minha lanterna.
— Isso está parecendo a carta que o Iver tinha no baralho hoje — disse Ernie enquanto mordia uma barra de chocolate.
— É — concordou Natália. — O Duende Exterminador.
— Eu tenho uma dessas cartas também — lembrou-se Harley, tirando-a de seu bolso. — Aqui está. O Iver me deu antes de sairmos.
— Os Exterminadores são o tipo mais perigoso de duendes. — Natália leu a carta enquanto Max e Ernie se aproximavam para ver melhor. — Diz aqui que eles são cegos.
— Onde ficam os olhos? — perguntou Ernie examinando a carta atenciosamente.
— Eles não têm — respondeu Natália enquanto lia a descrição no pé da carta. — Essa é a questão. Mas possuem um olfato poderoso que servem para quase a mesma coisa, ou até mais. — Ela fez uma pausa e encarou os outros.
— Continue — disse Max, impaciente, que se sentia afetado pelo sonho com o Exterminador.
— Também diz aqui que são capazes de passar do mundo das Faedas ao nosso. Parece que é o único tipo de Faedo que consegue.
— Como assim? — perguntou Ernie. — Pensei que estivéssemos falando de duendes e não de faedos.
— Um duende é um faedo — suspirou Natália enquanto pegava a bicicleta e voltava na direção da calçada. — Mas você não presta atenção em nada? É igual um lobo que é um tipo de cachorro. De qualquer modo, segundo a lenda, os faedos vivem em um mundo sombrio que se conecta com a terra através de pontes mágicas chamadas portais. Os Duendes Exterminadores são os únicos seres que conseguem usar portais.
Harley parou um instante para olhar o desenho na carta.
— Essa coisa aqui parece um pouco com a que eu vi hoje — disse, depois de pensar por um momento. — Mas como eu disse, não consegui ver direito.
— Além disso, os faedos não existem — acrescentou Max para tranquilizar mais a si mesmo do que aos outros.
— E se foi um mandril que atacou o Rosco? — sugeriu Ernie, sem pensar. — Tenho certeza que existe uma tribo inteira de mandris no bosque. Não seria legal?
Os outros olharam para Ernie como se ele estivesse ficando maluco.
— Ernesto! — exclamou Natália. — Os mandris vivem na África, não em Avalon.
— Eles podem ter emigrado — insistiu Ernie. A ideia dos macacos soltos pelo povoado lhe parecia interessante demais para esquecê-la assim de repente.
— A única coisa que emigrou aqui foi sua sanidade — replicou Natália.
— E como você sabe tanto sobre os mandris? — queixou-se Ernie.
— É que eu leio, seu idiota — respondeu. — Por falar nisso, meu pai me deu uma enciclopédia…
— Não fale de pais na frente de você-sabe-quem — sussurrou Ernie, mas bem alto, enquanto apontava a cabeça na direção de Max.
Max apertou a mandíbula. Ernie tinha razão. Não gostava de escutar ninguém falando do pai. As lembranças do divórcio ainda estavam muito recente e, para piorar ainda mais as coisas, só ficara sabendo disso uns três meses depois que já havia acontecido.
— Foi mal — desculpou-se Natália por não ter percebido que tocara num assunto delicado.
— Não é culpa sua — suspirou Max, e empurrou sua bicicleta para distanciar-se do outros.
— Que tal a gente passar na sua casa hoje? — sugeriu Ernie enquanto ele distanciava-se. — A gente podia ficar vendo TV a noite inteira.
— Não dá — respondeu Max. — Hoje vou dormir na casa da minha avó.
Dito isso, ele subiu na bicicleta e saiu pedalando rua abaixo, deixando seus amigos para trás.